quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Sobre o ano novo

Não gosto de fim
Nem gosto de começo

Quando emenda o fim com o começo
Então detesto...

domingo, 27 de dezembro de 2009

Anoitecer.

Anoitecer.
Junto à cerca elétrica,
Cai meu olhar na chuva.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Natal

Olho as estrelas agora e sei que o brilho deste instante viaja a anos pelo espaço. Talvez algumas delas já não existam mais e apenas são lembranças luzindo em meio ao nada.

Olho a nossa imensa insignificância cruzando o tempo. Somos como sombras vivendo entre o passado e o futuro. Uma fração pequena de segundos nos separa do ontem, do hoje e do amanhã.

Olho para o passado que é irrecuperável. Ele agora é apenas a luz que se apagou e ainda brilha na minha memória. O passado existe, mas é minha imaginação.

Olho para o futuro que se multiplica a minha frente. Muitos são os amanhãs que faíscam no impossível. O futuro é fruto de uma riqueza de variedades e pode ser provocado por quase nada.

Olho para nós e para a impossibilidade que nós somos. Um encontro desencontrado, uma realidade contra todas as outras realidades que podiam ser e não foram.

Olho para nós e para o passado e sei que é impossivel retornar ao momento antes de nós.

Olho para nós e para o futuro e sei que só o possível acontece.

Olho para os pontinhos incertos de luz que somos e para a imensidão do universo que nos cerca.

Olho e vejo que nós não somos nada.

Feliz natal.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Luz

me  ilumina
desde o centro
até o dentro
brota na flor
e transborda
até a flor
da pele
me acende
e rescende
à flor
transparece
em rubror
ou calor

domingo, 20 de dezembro de 2009

Fonte

Da minha fonte
que é pura
jorram as águas
que são tuas

Águas que escorrem
por entre as frestas
e apenas querem
saciar a sede dos poetas

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Febre

A pele queima
O corpo arde
A alma arrepia

Uma voz ausente
Que me acende
 Perturba o sono

Até o sonho
Até o delírio
Até o impossível

domingo, 13 de dezembro de 2009

Viola

Por que tu me deixas
tão solitária neste canto
a recordar-me saudosa
do teu suave encanto?

Por que tu me deixas
em abandono jogada
se sabes que meus sons
são das tuas mãos morada?

É com teus dedos ávidos
a percorrer-me as cordas
que arranca-me doces gemidos
por isso te imploro: toca-me.

Pois quando a tristeza aflora
nesta imensidão de silêncio
sem ti, tudo em mim chora,
por isso te imploro: viola-me.

sábado, 12 de dezembro de 2009

O primeiro passeio

A primeira vez que ela saiu portão afora vinha arrastada pela coleira. Um medo absoluto do que existia de lá da entrada. Medo do mundo. Do lado de dentro podia demonstrar toda a sua valentia e proteger seu pequeno espaço com dentes e ferocidade evidente. Mas do lado de fora só o desconhecido a aguardava. E aquilo que não conhecia era provavelmente perigoso.
Mesmo assim não podia deixar de ouvir os apelos do ser amado que a puxava e insistia: Vem comigo! Ela olhava com estranhamento para aquele ser que devia ampará-la, amá-la e cuidá-la. Por que está fazendo isso comigo? perguntaria se pudesse. Um pequeno sufocamento a impedia de pensar direito, ela estava sendo arrastada rumo a rua, ou seja, rumo a tudo que antes era interdito. Que poderia fazer a não ser ter pavor de tudo isso?
Uma vez do lado de fora, olhou firme para o seu amor, só nele confiava: Serás o meu guia? Seu amor sorria: Pronto, agora que estamos aqui, vamos! E continuou a arrastá-la que atordoada se via obrigada a segui-lo. Onde vamos? poderia ter perguntado. Mas perguntas inutéis não precisam ser formuladas.
O mundo em volta se transformava: a calçada virara asfalto e mais a frente virara grama. Olhava e cheirava o chão com delícia. Arriscava-se a olhar os carros, e cheia de pavor arriscava-se a olhar também as outras pessoas, e as árvores e os postes e as lojas e as crianças correndo e os ônibus e... Mundo caótico cheio de curiosidades ao longo do caminho.
Em pouco tempo já não era mais necessário arrastá-la. Ela corria feliz ao lado e às vezes a frente do ser amado. O que o fazia sempre que necessário puxá-la de volta para o lugar certo. O vento no rosto, o sol quente queimando a pele, o prazer de mover os músculos para frente, a alegria de estar a passeio com seu amor, não importa se vez em quando ele a atraia de volta em redor de si. Estava ilusoriamente livre.
Livre como nunca estivera antes em toda a vida, e, no entanto, presa, como sempre, àquele que a libertava e prendia ao mesmo tempo. Paradoxos que não lhe passavam pela cabeça, já que não se preocupava com isto. Tudo o que queria agora era passear e ser levada não importando onde. Queria apenas sentir esse sol, esse vento, a mão firme de seu amor mantendo-a junto a si e o coração batendo descompassado dentro do peito pelo caminho.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Línguas

as línguas mortas se atraem e se encontram
e deformam ao toque de vida
e desmontam planos e amontoam sonhos
as línguas tortas os caminhos tortuosos
percorrem promessas voláteis
que escorrem pelo ar cheio
luzes cobertas de som
o multicolorido barulhento
de um mundo que se derrete
sua úmido de calor e dor
as línguas turvas de ideias
desarvoradas porém descrentes

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Não sei

se calo

ou falo

se faço

e falho

ou grito

e mudo

               o mundo

domingo, 6 de dezembro de 2009

Magma

Nem esta manhã fria
Nem esta chuva fina
Nem esta alegria miúda

Impedem esse magma*
que me destrói a calma


*(lava ardente que me lambe e queima lentamente)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

monstros



Veja bem, não há mais flores no mundo. Todas elas desapareceram para dar lugar a monstros. Sim, são monstros criados em laboratório estas rosas que você vê nas lojas. Sim, são lindas estas rosas, mas nem todos os monstros necessariamente são feios e maus. São monstros porque são criações humanas.
As coisas criadas pela natureza não são monstros, são acidentes. Longos e longos anos de acidentes provocados por acasos genéticos criaram o ser humano que somos. Nós, o maior perigo já criado pelas forças da natureza, somos os criadores de monstros.
Voltemos as rosas. As rosas da natureza eram pequenas e sem graça. poucas cores e um cheiro delicado, perfume para nossos narizes sensíveis e pesquisadores. Olhamos as rosas e as amamos. Rosas são especiais, pensamos.
Rosas servem para oferecer alegria aos nossos olhos e narizes, rosas para oferecer de presente às mulheres que amamos e que parecem com essas rosas: belas e cheirosas, delicadas e traiçoeiras (rosas e mulheres têm espinhos). E rosas viraram nossa obsessão. Rosas vermelhas para os apaixonados, rosas cor-de-rosa para os amorosos, rosas amarelas para os amigos, rosas brancas para pedir perdão, rosas azuis... azuis? Para que servem rosas azuis?
Rosas azuis para provar que somos poderosos. Podemos criar todo o tipo de monstro. Até os lindos. Até os perfeitos. Nós, seres humanos, as divindades do mundo, domamos a natureza e criamos a vida. Somos os nossos deuses e nos colocamos no nosso próprio altar cercado das nossas próprias criações monstruosas: as rosas.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

perdição

só a perfídia
é divina
só a maldade
é perfeição
a minha sina
é minha prisão

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Solo


Um momento de silêncio pela noite afora. Ela não dorme nunca. Deitada de bruços espera o sono que não vem. Ninguém sabe desta insônia. Desta falta de esperança de sonhos. Não sonhar é primordial, porque são os sonhos que nos atrapalham a vida.

Suspiros e gemidos no quarto ao lado não incomodam. Ao lado sempre é mais feliz do que aqui. Aqui a solidão é que atrapalha o sono. Ao lado os acompanhados se amam como gatos: aos berros. Deixa-os com seus ruídos e mergulha dentro de si. Nesse vazio em si. Nesse oco que a corrói.

O vazio dentro do quarto cresce em ondas. Marulhos, barulhos, ondas quebrando na praia. Um mar atormentado que cresce em olhos que não são seus. A tormenta passará, pensa, logo amanhece de novo e  o mar se afasta. Com a maré mais baixa e a agitação do dia, as ondas do vazio se acalmam.

E a calmaria reina nos olhos dela o dia todo, até o fim. Até o início de tudo que não existe e não acontece no mar.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Amar o mar

por amar o mar
num certo olhar
perdi o medo
de me afogar

domingo, 29 de novembro de 2009

sem grandes desejos

sem grandes desejos de felicidade própria
decidi doar-me em favor da alegria alheia
e deixei que me escovassem os cabelos
me vestissem um vestido cor de arco-íris
me calçassem sandálias tão altas
me pintassem o rosto numa máscara
e me escondessem
eu em mim perdida
feita outra
e foi assim estranha pessoa
erguida a força as alturas
colorida e lisa
intensamente não eu
que me desdisse
encurralada
a minha
paixão

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Como num diálogo surdo

palavras sem importância trançadas
no aroma rarefeito das ideias
suspensas no vazio
frio
das muitas distâncias

língua
contra
língua

num debate embate
de pouca entrega
e muita luta
molhada de água
que as palavras lava

lava que escorre
de um vulcão
extinto
e surdo
mudo

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

sobre o amor VI

a moça
as mãos
roça
coração
coça
amor é
troça

Pedra


Uma pedra de gelo.
Formas de mulher.
Uma mulher estátua.
Imóvel e impassível.
Aguarda o sopro.
Divino sopro de vida.
Serena e gelada.
Espera secreta luz.
Centelha de fogo.
Sublime supremo calor
...




Suave serena secreta e seca 
Pedra de gelo estátua dura de mulher 
Gelada fria imóvel e impassível 
Espera impossível o supremo sopro 
Sublime divina centelha de fogo 
E gozo de luz e calor que derrete
A estátua que sua nua e crua
Sob a lua luz da rua sua tua.


sábado, 21 de novembro de 2009

vazios suspensos

sobre os vazios suspensos

no ar                                               

voejamos

moscas

soltas

doudas

nada a pensar nem a fazer

voejamos

luz na poeira

doira

sujeira

solta

no ar

sobre os vazios suspensos

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

por isso

desejo paz de espírito

por isso

não me aponte este fuzil

por isso

não me pegue em delito

por isso

querer semi-automático servil

por isso

te evito

vício

terça-feira, 17 de novembro de 2009

testamento

todos
os meus
pedaços
te deixo

minha malfadada herança

roça sem pejo
os teus pelos menos
te oferecendo
te negando
te controlando
com parcimoniosa
selvageria
os fluxos de desejo

por um corpo despedaçado

domingo, 15 de novembro de 2009

Chá


tome um chá
para se acalmar
não fique nervosa
que isso te faz mal
não tire as roupas do armário
fique
nada aconteceu de verdade
foi só nossa imaginação
não te acusamos de má
não queremos que vá
te perseguimos sim
porque é amor
o que sentimos
por favor não fuja
fique
tome um chá
para se acalmar

...

gosto de chá
em belas xícaras
brancas
com pequenos desenhos
flores vermelhas
mansas
em belas xícaras
brancas
gosto de chá
em canecas antigas
esmaltadas
canecas de casa de vó
gosto de chá
adocicado com amor de vó
de voz docinha
dizendo
não fica nervosa
que te faz mal
tome um chá
para se acalmar
fique

sábado, 14 de novembro de 2009

Ondjaki

"as palavras são muito bonitas também porque têm significados cicatrizados nelas"

A bruta

Se este silêncio é seco

Se este olhar é frio

Se esta palavra é áspera

Se tudo isto demonstra monstruosidade

Perdoa

Eu sou mesmo bruta, mas não é maldade.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Mais uma boa experiência de leitura


Comprei A relíquia na rua de um ambulante que estava vendendo livros usados no chão. Encontrei entre tantas inúteis enciclopédias antigas e desatualizadas esse Eça de Queiroz e fiquei feliz em pagar por ele a bagatela de 2 reais. Claro que o vendedor não sabia que eu estava comprando ouro com dinheiro de comprar balinha. Mas tudo bem, nós dois ficamos felizes. Ele porque vendeu e eu porque comprei um bom livro quase de graça.
Conhecia A relíquia de nome por causa do Antonio Candido que sempre citou Eça como um de seus autores portugueses preferidos. Com esse respaldo altivo, levei o romance para casa e mal consegui esperar o momento feliz de abrir suas páginas e começar a leitura. E ele não me decepcionou. É um livro realmente incrível, escrito com toda a ironia possível e muito engraçado.
O protagonista se chama Teodorico Raposo. O moço português fica orfão muito criança ainda e é criado por uma tia muito rica e beata, a Titi. Todos procuram agradar Titi, por conta de sua riqueza e Teodorico não fica atrás. Passa o livro todo vivendo duas vidas: uma diante da tia, de muita devoção e sacrifícios em nome da fé, e outra longe dela, na qual recebe a alcunha de Raposão e é um devasso completamente entregue aos prazeres do mundo. Teodorico espera muito ansiosamente a morte da Titi, pois assim se livrará da vida de devoto e como herdeiro poderá gastar todo o dinheiro da velha nas suas aventuras de rapaz.
O que acontece é que Titi demora a morrer e estando doente resolve enviar o sobrinho Teodorico à terra santa para lhe trazer uma relíquia capaz de melhorar a saúde. O sobrinho vai, exultante diante da tia pela possibilidade de conhecer a terra onde Jesus nasceu, e muito infeliz longe dela já que sua verdadeira vontade era conhecer Paris, terra mais livre onde jovens como ele poderiam conhecer todo o tipo de prazeres e relaxações conhecidos.
A viagem como se pode imaginar é para Raposão uma oportunidade de desfrutar do dinheiro da tia, longe dela. Ele encontra lá os seus prazeres pelo caminho, especialmente com Mary, uma luveira muito bonita, e dela ganha uma camisola como lembrança, guardada com muito carinho e saudades das relaxações experimentadas ao lado dessa moça de braços gordinhos. Ao chegar em Jerusalém percorre-a ao lado de Topsius um companheiro de viagem muito estudado que aí está para estudar a história do rei Herodes. Estranhamente, um dia, ambos acordam nos tempos de Jesus e são testemunhas oculares da condenação e crucificação do rabi. Claro que descobrem os segredos que não estão no novo testamento sobre como o Messias era também devasso e se deitava com todas as mulheres das quais se agradava, e como a ressurreição na verdade era apenas uma tramóia, entre outras revelações bastante estranhas e engraçadas. Uma passagem do livro interessantemente "pós" moderna, já que se trata de uma paródia da história bíblica, contada com muito humor e crítica.
No final, já de volta a seu tempo e a seu Portugal, Teodorico comete um erro fatal para suas ambições de herdeiro. Entrega a Titi a relíquia errada, no lugar da falsa cruz de espinhos que trouxera da terra de Jesus, entrega a camisola de Mary, sua lembrança dos amores mundanos e dos momentos de pecado vividos durante a viagem. Titi fica furiosa e expulsa de casa o sobrinho. Este, deserdado, passa a viver uma vida bem distante da sonhada, mas agora livre da hipocrisia a que se via obrigado anteriormente.
O resumo acima obviamente não faz juz a narrativa de Eça. O autor tem um ritmo de escrita e uma fina ironia que o faz merecer o título de grande mestre da literatura portuguesa. E eu me diverti muito com esta leitura. A crítica à igreja católica e à fé falsa do povo não me passaram despercebidas, mas o que mais me divertiu foi o fato de o livro tratar de maneira tão "pós-modernista" o tema da paródia. É um livro do século XIX, realista, e ainda assim traz elementos muito atuais, e que são tratados como novidade nos dias de hoje. As novidades de hoje são muitas, mas nem sempre são mesmo novidades...

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O que fazer?

Quando não há
graça e sentido,
Quando não há
razão e motivo,
Quando não há
nada a dizer
ou sentir,
O que fazer?

Calar-se...

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Os mortos

Morrer faz parte da vida,
todo mundo que nasce um dia morre,
ou, muitas vezes, morre antes de nascer,
então, faz parte do problema de viver,
um dia não mais viver, morrer.

Na maior parte do tempo corremos da morte,
vamos ao médico sempre que adoecemos,
tomamos remédio, usamos óculos, passamos creme,
protetor solar, nos alimentamos com cuidado, fazemos exercício,
cuidamos do corpo e do espírito, trabalhamos, descansamos,
tudo para manter a boa saúde e viver mais e melhor.

Mas o fato é que nada disso adianta,
pois um dia chega a dama branca,
com sua foice gelada e nos sorri com dentes perolados,
e, sem outra escolha, nos abandonamos a ela, deixando para trás
toda a família, que tanto amamos, protegemos e conservamos,
também ficam os bens que adquirimos com esforço e suor,
a bela casa, o carro imenso, as roupas de marca, compradas no shopping,
as jóias que usamos tão pouco, com medo dos ladrões.

Nada mais óbvio que a morte, não importa de quê morremos,
O que importa é que esta bela senhora vestida de branco com sua linda e afiada foice,
chega.
Chega sorrindo sempre com seus dentes perolados e não há como fugir desta sina.
Ela está esperando a hora certa, ou incerta, ou talvez nem seja isso,
ela está aqui ao meu lado todo o tempo esperando a sorte ou acaso,
uma doença mais grave que este resfriado, ou um acidente mais ferrado,
ou talvez ela esteja esperando eu me decidir
'corto ou não corto esse pulso direito?'

pois alguns amam mais do que eu essa dama branca,
e morrem mais e melhor do que eu
todos os dias,
às vezes, mais do que nascem,
 morrem...

Mas um dia será O dia, também o meu e dos outros,
não tem tanto drama com dizem, pois afinal, é o final,
aquele que tanto aguardamos no cinema ou no teatro,
quando assistimos um suspense, ou que nos faz saltar as páginas de um livro,
pra saber quem é o bandido e se alguém vai morrer logo, ou se demora ainda,
ou se vai se salvar e o no fim tudo fica bem, se há casamento, e filhos e happy end

Só que na vida real o fim não é agarrar a noiva pelos cabelos e tascar-lhe um profundo beijo,
nem tanto isso, porque este é só o começo, enfim, depois do casamento, e dos filhos, e de tudo o mais que:
Mais que tudo, o fim é quando finalmente se morre,
porque só depois disso é que as pessoas dizem
"esse era um bom sujeito"
ou dizem, "vaso ruim um dia quebra",
mas dizem tudo isso porque era razoável que um dia todos morrem.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Animal

ele está lá
espreita e espera
sem descanso

o que ele quer?

esta carne
que ele ataca
que ele arranha
que ele odeia
que ele ama

deseja destruição
dilacera
devora
delicia

e se alimenta
de mim

esta carne
deprezada e desejada
amada e odiada
carne podre
meu cadáver

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Lago Azul



Lago de São Simão


Amanhecer
todos os dias
amanhece
mas
raramente
a gente
amanhece
azul
ondulante
azul
deslizante
azul
cortante
azul
mareante
azul

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Palavra

doce e delicada

ela despe
 e pede
ela chora
e  implora
ela úmida
e soa muda
ela cicia
 e delicia
ela  a  pa
lavra

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Perfume

Brota do interior
de uma ferida
Escorre gotejante
pelos poros puros
Um cheiro triste
silencioso olor
sabor de morte

Carniça

sábado, 24 de outubro de 2009

Meditação transcendental

 parar de pensar

     é difícil

mas

como eu quereria

        parar de pensar

por um só instante

parar
        de
             pensar.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Ser mulher

   Uma experiência interessante é tentar analisar as mulheres nos dias de hoje. Ser mulher atualmente é bem diferente de como era na primeira metadade do século XX. Se antes parecia destino certo para todas o casamento e a maternidade, e quem fugia disto era considerada uma verdadeira pária, um ser basicamente marginal, visto ora com receio ora com desprezo, agora já não é mais assim.
   As mulheres podem escolher mais os seus próprios caminhos. Podem estudar e seguir uma carreira profissional, e decidir se querem casar ou não, ter filhos ou não, morar sozinhas ou acompanhadas, ter um companheiro fixo ou ter vários, etc. Já não é tão rígido o olhar sobre a mulher sozinha e nem a mulher casada goza de uma posição privilegiada como antes. A maternidade, apesar de continuar sendo cobrada, afinal "uma mulher só sente realizada quando é mãe" (segundo alguns), não é impossível que uma profissional de sucesso abdique de ser mãe em prol da carreira. Isso já não é consideradao como um pecado mortal.
   Parece que, enfim, as feministas venceram. Nós estamos num momento em que somos de fato consideradas com um valor semelhante ao valor do homem dentro da sociedade. Todavia, parecer não é ser realmente. Podemos começar a duvidar desses ganhos femininos a partir do momento que observamos a relação das mulheres com o próprio corpo. Muitas mulheres têm se mutilado periodicamente em cirurgias plásticas, têm se privado de alimento e morrido de inanição pelo fato de precisar apresentar uma magreza exagerada para ser considerada bonita, têm experimentado a maravilhosa sensação de colocar formol nos cabelos para fazê-los lisos... e isso são só alguns exemplos.
   Essa maneira de encarar o corpo como um inimigo a ser dominado, domado e modificado, tem como objetivo torná-lo cada vez mais perfeito. E isto tanto pode ser para atrair o sexo oposto, ou seja, transformar o corpo num objeto sexual, como também pode ser para demonstrar poder. As mulheres realmente poderosas conseguem até mesmo dominar a natureza e impedir seus frágeis corpos de envelhecer. É um mundo de aberração este nosso. Mulheres agora são de plástico, todas nós bonecas de plástico, Barbies gigantes... Se por um lado alcançamos uma liberdade nunca antes experimentada, por outro estamos cada vez mais presas. As mulheres por enquanto continuam vítimas de uma perversão: o olhar do outro machuca mais a elas que aos homens. Sempre.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Dramaturgia

Talvez
eu me
mate
antes
do
fim.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Eu não sei o porquê...

Por que esse cansaço estranho, se até agora não fiz nada?
Por que essa sensação de absurdo, se ainda não há erro?
Por que essa vontade de não ser, se nunca fui de fato?

sábado, 17 de outubro de 2009

Em comemoração ao dia dos professores


A vida não é fácil para ninguém, é verdade. Mas ainda assim corta o coração ver uma criança ter responsabilidades de um adulto. Outro dia encontrei um menino assim. Ele é sisudo como só um pai de família deveria ser. Um rapazinho miúdo e de óculos que nunca sorri. Na escola, ele senta na primeira carteira, não conversa, e presta bastante atenção na aula. Às vezes faz umas caretas, parece não estar bem, mas eu acho que na verdade deve ser dificuldade de entender o que está sendo dito.
São muitas as preocupações que atormentam aquela cabecinha. Ele me contou que tem três irmãos. Um mais velho e dois mais novos. Moram com a mãe, do pai nem uma palavra, também não perguntei. No dia em que conversamos, Rondney (é esse o nome dele) estava fazendo prova de inglês reclamando que não teve tempo de estudar. Por quê?
_Tive que levar meus irmãos no dentista_ respondeu sério.
_E a sua mãe? Você não disse a ela que precisava estudar?
_Disse, mas ela ia lavar roupa.
Lavar roupa! Veja: Rondney é um menino minúsculo, parece até um boneco de tão pequeno. Ele diz que tem doze anos, mas não aparenta nem dez. Mesmo assim ele pode pegar os dois irmãos caçulas e levar ao dentista, para ajudar a mãe que além de estar ocupada ainda paga a passagem do ônibus. Ele não paga, é muito pequeno. E seu irmão mais velho?
_Aquele lá ninguém entende. Ele quer ser mala. Para ele, meus irmãos são um peso. Eu que tenho de tomar conta deles.
Coitadinho. Tão novinho e já entendendo tanto do mundo. Com tanto peso no peito e nos olhos. Uma experiência incrível olhar nos olhos de um menino adulto. Não há leveza, nem brilho nesse olhar. Pelo contrário, o rosto dele é uma aberração. Demonstra um sofrimento, um cansaço, muito incomum.
Algumas mulheres mereciam nascer secas. Fertilidade para elas é inútil, pois põem no mundo pequenos sofredores. Crianças tristes, para quem até a esperança surge no horizonte como utopia: distante e inalcançável.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Entre dois mundos

A sociedade contemporânea tem na atualidade uma complexidade a resolver. Estamos situados num entre lugar que é difícil de definir. Este entre lugar é aquele que não é real e nem virtual. As novas tecnologias nos colocaram numa desconfortável posição, ou seja, estamos agora ou off line ou on line. Não podemos mais nos colocar diante do mundo sem conhecer a realidade virtual que a internet nos apresenta. O que parece por um determinado ângulo uma contradição, real versus virtual, se coloca para nós como a única realidade indiscutível. Dentro da interação que nos é imposta por nossa condição de seres sociais por natureza, as formas mais modernas de comunicação e troca de conhecimentos se impõe como regra na virtualidade.
Não podemos mais negar essa relação do homem com a tecnologia e será difícil resolver as questões que surgem agora sem um novo aparato teórico que nos apóie. As teorias que se referiam ao mundo moderno industrial e pós-industrial já não conseguem mais explicar o mundo da cibercultura. As relações interpessoais ocorrem independentemente do contato físico entre os indivíduos. Há a radicalização do intercâmbio de informações que não estão necessariamente presas a determinados grupos de interesse, devido à infinita possibilidade de divulgar e adquirir conhecimento que a rede proporciona a seus usuários. Há também uma verdadeira revolução cultural em trânsito cada vez mais difícil de ignorar: as artes encontraram na rede um espaço enorme de divulgação e de realização.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Ela vai morrer de câncer

Ela vai morrer de câncer e isso é fato. Todo mundo sabe disso e observa como a cada dia ela parece mais fraca. Dizem que as mulheres que são traídas pelos maridos sempre desenvolvem um tipo de câncer. É o câncer das corneadas, um câncer que mistura tristeza e frustração. E pode até ser verdade já que o primeiro marido dela era mesmo um murelhengo. Tanto que todo mundo diz que ele morreu de ataque fulminante do coração enquanto transava com uma mulher vinte anos mais nova. Deve ter sido muito constrangedor para a jovem ter de chamar a funerária no motel.

Mas o fato é que ela vai morrer de câncer, não importa se por causa das muitas vezes que foi traída pelo seu primeiro marido. Primeiro, porque depois desse, ela se casou novamente. Dessa vez, o homem era sério e pareceu gostar dela, em especial pelo simples motivo de ter ficado viúvo e com dois filhos para acabar de criar: um deles ainda adolescente e o outro portador de necessidades especiais. Como ele ia cuidar de suas fazendas e suas muitas cabeças de gado, tendo que cuidar da casa e dos filhos? Ele necessitava de uma mulher para tomar conta dessas coisas práticas: a limpeza da casa, a comida, a roupa que precisava ser lavada e passada, e, ainda, os filhos... Ela aceitou o casamento e todo mundo disse que foi por causa do dinheiro. Ninguém pensou que ela talvez não quisesse ficar sozinha, sem marido, desempregada e com duas filhas desamparadas. Ninguém pensou que talvez a solidão e a rejeição do primeiro marido a tivessem feito valorizar a possibilidade de ser escolhida por um homem que, sendo rico, poderia ter escolhida qualquer outra.

E agora ela vai morrer de câncer. Não importa mais se o atual marido tem dinheiro, nem importa se ela deu o famoso golpe do baú, e muito menos todos os anos que ela teve de agüentar a maledicência de todo mundo. Ela que todo mundo tinha como a chifruda que conseguiu dar a volta por cima, casando de novo com um homem de posses, na verdade é uma mulher simples. A vida inteira cuidou de tudo e todos. Era ela quem curava as bebedeiras do primeiro marido, quem protegia as filhas da violência paterna. Era ela quem, um dia viúva, levantou a cabeça e olhou para o lado procurando outros a quem pudesse cuidar. E, sim, ela encontrou outro homem que precisava dela. E cuidou dele. Cuidou também dos filhos dele, do adolescente e do deficiente. Não reclamou de nada. Cuidou de todos com muito e verdadeiro amor.

E vai morrer de câncer. Sob os olhos de todo mundo, isso é fato. Vai morrer, e será que agora que o fim está próximo, alguém vai cuidar dela?

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Língua negra

língua negra
a pele me fere
que no dentro
no meu dentro
do meu centro
que no centro
me fere a pele
língua negra

domingo, 11 de outubro de 2009

Sol

sol

Hoje amanheci mais cedo

lavei os olhos no orvalho da madrugada
respirei uma umidade impregnada de dedos
me preparei para estar todo o dia ensolarada
sol
sol
Hoje pretendo me alimentar de luz e serei
Nada no ardor do corpo ruído
a dar braçadas através do astro rei
tingir pele e pelos de amargo amarelecido

sol

sábado, 10 de outubro de 2009

Sobre o amor V

Olhos repousam repulsivos nas retinas

Sorrisos desmontam-se de encontro a lábios

Corações debatem-se dentro do peito

Centros incandescentes a ferver os miolos

Almas que invejam os corpos doentes de amor

Que se entendem...

Que se entendem...

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Diálogo entre duas moças que vão morrer*

- Então é isso: eu vou morrer.
- Mas todos nós vamos...
-Você não entende: eu estou muito doente, meus ossos são de vidro quebradiço, minha pele se liquefaz ao contato do ar, todo meu corpo desafia a possibilidade de vida...
- Você não é diferente de ninguém. Vai morrer agora ou daqui alguns dias ou daqui alguns anos... Todo mundo é assim...
- Só que eu estou desenganada, os médicos não sabem o porquê de eu ainda estar aqui. Vou morrer, de fato, como todo mundo, mas diferente dos outros, sei que não tenho muito tempo nessa vida, compreende agora?
- Sim, entendo o que você quer dizer. Mas não é tão ruim assim. Você não pode fazer planos para o futuro, porque sabe que ele não existe. Nós, que vamos morrer e não sabemos quando, ficamos construindo planos que talvez nunca se realizarão.
- Não é isso... você ainda não entendeu, a minha vida acabou, eu estou no fim... tenho o direito de estar desesperada!
- É... e você está desesperada?
- Não.
- Todos sabemos que vamos morrer. E lutamos ardentemente pela vida afora... E tentamos viver cada vez mais e melhor. Mas viver é mais complicado quando se tem um futuro. Como você só tem o presente não precisa se preocupar com o que há de vir. O que há de vir não é pra você sofrimento, porque sofrimento é só o presente...
- Eu morro e vocês ficam vivendo sem mim. Me sinto muito sozinha... eu vou e todo mundo fica...
- É verdade... mas também pode ser que eu morra antes de você. Quem sabe? Daí, você fica sozinha em vida. Parece que se pode prever o dia da sua morte, mas não se pode prever o meu... porque eu tenho saúde e posso morrer antes de você que não tem.
- Eu sei. Mas não devia estar desesperada? Não devia estar chorando e sofrendo por não ter futuro a minha espera? Eu não vou fazer um monte de coisas que você pode fazer: não vou estudar nem trabalhar, não vou casar nem ter filhos... eu nem posso me apaixonar, porque vou morrer. Eu não tenho esperança...
- Nem eu...

*baseado em fatos reais

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Diabólico, o demônio...

Diabólico, o demônio me persegue insistente. Da maneira mais vil me mostra tudo aquilo que não tenho: a beleza e a juventude, o amor e a alegria, o luxo e a saúde.
Diabólico, o demônio me sorri sedutor. Da forma mais delicada me oferece o irresistível: a mais crua felicidade que nunca tive. E destrói minhas defesas com muito cuidado.
Diabólico, o demônio quer a minha harmonia na terra. Quer que desfrute de todas as delícias do corpo. Quer me ver, delirante e cega de amor, arquejar no entorpecimento do gozo.
Diabólico, o demônio me quer como nunca ninguém me quis. Serpenteia a minha volta e me deseja com olhos dengosos e fala galante.
Diabólico, o demônio me ama, como Deus nunca amou... Me toma nos braços e afaga e promete prazeres sem fim.
Diabólico, o demônio incendeia minha pele. E é para mim que prepara com carinho intenso a minha vaga no caldeirão do inferno.

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