segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Sobre o bolsa-família:

Existem muitas críticas ao programa bolsa-família, mas eu acredito muito nele e quero explicar a razão. Antes de tudo, deixa dizer de qual lugar eu falo: sou professora de escolas públicas. Há dez anos que trabalho exclusivamente em escolas públicas, para as quais entrei via concurso público. Por causa disso, convivo e já convivi com diversas famílias em situação de risco, daquele tipo que sobrevive ameaçada por pobreza extrema, por violência, por falta de moradia digna, por dificuldades de acesso a tratamento de saúde, etc. Já tive bastante problema com os filhos dessas famílias, problemas de toda ordem: meninos e meninas que sofrem muito e que fazem a gente sofrer com eles. Já vi crianças desmaiando de fome porque iam para a escola sem tomar café da manhã e sem almoçar, já vi adolescentes se perdendo no mundo das drogas e da prostituição, já vi meninos de 12 anos trabalhando para sustentar os irmãos mais novos, já vi crianças que por todos os abusos sofridos não sabiam fazer outra coisa que não fosse abusar dos outros... Mas também conheço histórias de superação que merecem ser contadas.
Tenho na minha memória a história de uma família de nordestinos. Pessoas que migraram de seu estado porque acreditavam que aqui em Goiás teriam mais oportunidades. No entanto, ao chegarem aqui se depararam com dificuldades, se não piores muito semelhantes àquelas que enfrentavam no seu lugar de origem. Eu os visitei onde moravam: um barraco feito de restos de mdf e lona ao lado do cemitério parque. A mãe era diarista e o pai catador de lixo e eu os conheci porque os filhos foram matriculados na minha escola.
Não posso contar muito do dia a dia dessa família, mas posso contar de dois momentos apenas: o dia em que o pai foi matricular os filhos na escola e o dia em que foi buscar a transferência. No primeiro momento nos impressionou a todos como aquele catador de lixo era muito mais esclarecido que muitos pais de renda maior do que a dele. Ele dava muita importância aos estudos dos filhos, à leitura de bons livros, e demonstrava um respeito à instituição escolar que talvez pessoas de classe média não conseguiriam entender. No segundo momento, nós nos despedimos daquela família muito tristes por não mais conviver com eles, mas extremamente felizes porque eles tinham conseguido o que vieram buscar em Goiânia: dignidade.
Por muito tempo eles receberam o bolsa-família, e agora estavam indo para uma casa de verdade que conseguiram comprar pelo Minha Casa, Minha vida. O filho mais velho havia terminado o ensino médio e já trabalhava de carteira assinada, a filha do meio terminou também os estudos a pouco tempo, entrou numa faculdade privada e está pagando as mensalidades com ajuda do prouni e a mais nova tem a expectativa de, assim que terminar o 3º ano, conseguir entrar numa universidade pública, através do sistema de cotas, pois sempre estudou em escolas públicas.
O pai estava muito feliz quando veio se despedir de nós. Fez questão de agradecer a todos os professores que pode encontrar naquele dia. Segundo ele, foi naquela escola que começou uma revolução na vida da família dele. A família saiu de uma pobreza extrema para um nível de remediados. E, em breve, devido ao aumento de escolaridade das filhas, eles provavelmente vão atingir o nível de “classe média”. Os filhos não vão precisar de bolsa-família, com certeza, e não vão passar pelas mesmas dificuldades que os pais.

Para mim, essa é a função do bolsa-família: ajudar famílias como esta e outras a encontrarem um caminho para ascensão. Sair da pobreza extrema e atingir um nível em que não precisem mais de receber ajuda do governo. É claro que existem falhas no programa e é claro que deve sempre haver fiscalização e reformulações quando estas forem necessárias. Mas demonizar um programa como este, que está ajudando tanta gente a ser gente, para mim é sinal de que este país tem muito mais problemas do que conseguimos imaginar...