domingo, 26 de abril de 2009

Selvageria


Caminhava descuidadamente entre as barracas. Ouvia sorrindo as graças dos feirantes. “Moça bonita não paga, mas também não leva”. Sorria sempre, mas falava pouco. Escolhia o que queria, pagava e saia. Sem muito papo. Sem muitos detalhes. Na volta ainda passaria na padaria, compraria pão e leite. Talvez passasse na banca de revistas. Ler as notícias da manhã era boa idéia. Uma distração e tanto saber dos horrores do mundo. Este sim era tão terrível e tenebroso que até podia esquecer. Esquecer do quê? Da dor que deveras sente. Sim, o poeta fingidor. Finge dor.
Passou na banca de revista. Olhou primeiro os jornais. Pegou um. Entrou na banca, passou os olhos pelas capas das revistas. Fofocas de artista de novela. Ela às vezes assistia a novelas. Quase sempre sem entender nada. Assistia só para ter companhia nas noites silenciosas. Uma mulher loura de vestido rosa sorria tanto da capa da revista. Essa aí com certeza não pagaria nenhuma banana na feira. Escolheu uma revista com manchete bombástica “Passa de mil as mortes de civis em Gaza”. Era disso que precisava.
Terrores para aliviar a sua própria culpa. Culpa? Sim, culpa de não estar morrendo em guerra nenhuma. A culpa de estar morrendo por ser quem se é. A culpa de sofrer sem motivo algum. Ou há motivo? Um motivo tão obscuro que nem ela pode saber. Um mistério soturno. Sorriu para o jornaleiro que pegou seu dinheiro e que lhe devolveu o troco sem sorrir de volta. Sorriu em vão mais uma vez! Que pensava o jornaleiro? Que ela doava sorrisos sem querer nada em troca? Será que ele não desconfiava o quanto sorrir era difícil? Não sabia que levantar de manhã, abrir a janela, sair para comprar mantimentos, passar na banca de revista... tudo isso era sofrimento, era dor, era quase impossível? E que mesmo assim ela sorria, sorria vitoriosa, porque mais uma vez conseguiu vencer a si mesma, se obrigou a sair da cama, apesar da tristeza que a impedia de ter vontade, apesar de toda aquela imensa dor na alma, apesar de todo o pânico, e saiu! Na padaria o moço da caixa sorriu de volta e lhe disse “Tenha um bom dia”.
Tenha um bom dia. Só um bom dia depois de tantos dias ruins. Ela resolveu que apesar de tudo teria de fato um bom dia. Voltou para casa de cabeça erguida e encarando os estranhos. E todos os estranhos estranhavam seu olhar, por isso faziam de tudo para não perceber que ela os olhava. Escondiam os olhos na rua, nos carros que passavam, no muro, na árvore, no poodle da velhinha que fazia xixi no poste, na beleza da moça que corria para alcançar o ônibus...
Na entrada do prédio o porteiro sorriu primeiro e sustentou seu olhar severo:
“Bom dia, dona!”
“Bom dia, lindo dia na verdade.”
“É, parece que hoje o sol vai acabar com a gente.”
“É um sol estrelado.”
O porteiro riu, achou graça na resposta e pensou consigo “Moça esquisita”. Ninguém ouviu o que ele pensou, mas ela sentiu que era esquisita. De novo se sentiu derrotada, uma pena, porque vinha vencedora a rua toda. Dividiu o elevador com a velha senhora e seu poodle. O poodle mostrava-lhe os dentes pequeninos ameaçadoramente.
“Não, meu anjo, não assusta a moça. Ele é assim só no primeiro encontro, depois fica adorável. Brinca com todo mundo.”
“Claro.”
“É meu companheirinho. Depois de velha, meu bem, os filhos vão embora, o marido troca a gente por três de vinte e a gente fica sozinha. Não fosse esse meu anjinho... Não fosse ele, nem sei o que seria de mim...”
“É mesmo um cachorro de sorte.”
“Ah, não, meu bem! Eu é que tenho sorte.”
“É o meu andar.”
“Oh, meu bem, até mais, então. Se você precisar de alguma coisa é só pedir. Eu moro no 703.”
“A senhora é muito gentil, obrigada!”
“Imagina, meu bem, qualquer coisa ouviu.”
O elevador se fechou e ela se sentiu bem novamente. Muito bem, meu bem, vamos entrar. Deixou as compras na cozinha miúda e se sentou no sofá para ler as notícias. Tragédias, mortes, assassinatos, guerras, crise, bolsa, sim, o mundo... Esse mundo horrível e lindo. Esse mundo ameaçador e salvador. Como um poodle no elevador. Sentiu um certo incômodo. Levantou e abriu a janela. Uma lufada de calor a envolveu como um bafo, não, não um bafo, mas como um hálito do homem amado. Olhou para baixo, não devia ter escolhido um apartamento tão alto. Era tentador demais acabar com tudo isso, com tudo isso que as pessoas insistem em chamar de vida. Levantar, comer, trabalhar, comer, deitar e voltar a dormir. Se era só isso, porque Deus perdeu o tempo criando “vida”? Talvez o Senhor estivesse enfastiado com a eternidade, e criou tudo isso para se divertir um pouco. E agora? Que era do mundo? Deus já teria se entediado com a vida também?
O incômodo crescia. Sentou-se a mesa de trabalho. Queria escrever para se livrar do incômodo. Olhou o céu pela janela e lembrou-se do lago. O lago azul de sua terra. Tão lindo. Um pedacinho do mar no meio do mato. Um lindo cemitério, embaixo dele afogada toda uma cidade. Sua cidade natal. Queria voltar para lá. Talvez voltasse no dia em que enfim desistisse. Pegou o bloco de papel, não quis ligar o computador (barulho e brilho), preferia a companhia segura de papel e lápis.
Respirou fundo e começou o trabalho de se livrar do incômodo. Dentro de si gritava a sua mente enlouquecendo os seus sentidos. O lápis sujava as folhas do bloco esfregando-as rapidamente para lá e para cá, cada vez mais rápido. O atrito entre ponta de lápis e papel cada vez mais forte. A respiração ofegante, entrecortada de suspiros lastimosos. O incômodo cada vez maior, cada vez mais intolerável. Queria se livrar dele escrevendo sobre ele, mas só conseguia intensificá-lo. Caiu para trás com um gemido, a respiração cortada, um momento de quase desmaio. Profundo o bastante para que ela desistisse. Deixou-se consumir pelo que a incomodava. Deitou-se no chão, desmanchando-se como nuvem de encontro à montanha. E se consumiu num choro absurdo. Era o silêncio, era a solidão, era o vazio... E a dor, a dor, a dor que o poeta finge é a dor que deveras sente.

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