quarta-feira, 13 de maio de 2009

O obscuro


Tudo tem um começo. Comigo não poderia ser diferente. Acontece que eu sempre escolhi os caminhos mais bonitos. Nunca escolhi o trajeto da minha vida pela menor distância, ou pela facilidade, ao contrário. Mais difíceis, mais longos, porém sempre belos.
Foi assim que um dia entrei por uma avenida de três pistas. No meio desta ia minha bicicleta. E pedalando eu olhava para o alto. O sol filtrado pelas folhas das árvores que se entremeavam galhos de uma com os galhos da vizinha ao lado e com os da vizinha da frente. Lá no alto o céu se deixava entrever, contraste entre o azul celeste, o verde das folhas e o vermelho das flores.
E ia a bicicleta sozinha a zanzar por esta sombra, o meu pulmão aspirava o perfume doce das flores, minha cabeça percorria outras veredas muito mais distantes do que o meu real objetivo. Foi quando no horizonte delineou-se uma figura escura. Meus olhos se esforçaram para me dizer se aquilo era humano, ou animal, ou ainda se não era de nenhum ser vivente.
A princípio, a curiosidade grande não me permitiu temer o novo. Aquilo que se assomava a minha frente não me metia medo, apenas me atraia como a cobra atrai a presa antes do bote definitivo e letal. Mas, à medida que eu me aproximava, o ritmo das minhas pedaladas diminuía e, mais lentas, as minhas pernas pareciam mais espertas do que a minha cabeça.
Aquilo de fato não era gente. Era uma criatura estranha e negra, que amontoada como estava, não parecia ser humano. Quando parei ao lado e olhei do alto da minha curiosidade, resmungou: Vem aqui, menina! Assustei-me: Isso fala! A criatura me olhou como se tivesse olhos, do fundo da escuridão que parecia um rosto. Tive medo e já ia me afastando, mas um tentáculo que parecia braço me derrubou da bicicleta. Cai como se o meu corpo pesasse toneladas, um estrondo marcou minha chegada ao chão.
- Mas por que você fez isso? – retruquei em meio a caretas de dor.
- Pra você me entender, precisamos estar no mesmo nível – respondeu meu interlocutor, com uma boca indecifrável.
Eu olhei de novo para a face obscura, mas não pude olhar por muito tempo, a escuridão era mais difícil de contemplar que a luz do sol.
- Eu não entendo... comecei, mas a coisa se movimentou como se me pedisse silêncio.
- Pra entender não é preciso falar, nem perguntar, apenas ouça.
Meu medo era palpável, o coração queria pular do peito para a garganta que doía e a qualquer momento poderia explodir em gritos incontroláveis. Porém, a curiosidade é maior do que tudo. Eu me preparei para escutar, com toda atenção, o que o ser que não era humano queria me dizer.
- Eu sou um anjo, declarou sem rodeios.
- Você não parece um anjo, disse. Lembrei de todas as figuras angelicais que já tinha visto na vida e que em nada se pareciam com o ser escuro a minha frente.
- Mas é o que eu sou, embora sua visão não possa decifrar todas as informações que minha figura possui.
Não podia estar diante de um anjo e sentir tanto pavor. Devia ser um anjo caído, um demônio, um como Lúcifer que na ausência divina perde a aura de bondade e...
- Não fui expulso do céu, estou aqui porque Deus não existe mais, disse sem rodeios.
- Mentira.
- Não esperava que você acreditasse, mas esta é toda a verdade. A mais de dois mil anos atrás, quando Deus andava na terra e viu todas as coisas que fez, decepcionou-se imensamente com os seres humanos. Desde então teve desgosto atrás de desgosto e então desistiu de ser. Um dia estilhaçou-se no ar.
- Não pode ser! Você mente para me por medo.
- Não tenho motivos para isso. Eu só quero que você também saiba. Na verdade, sou o mensageiro das boas e das más novas. Tenho dito a alguns poucos escolhidos aleatoriamente que não há mais esperança. Até Deus desistiu.
- Mas o que vai ser de nós!
- Não sei. Os anjos estão desaparecendo, o céu ruiu, não há mais nada para ser feito.
- Então estamos jogados a nossa própria sorte?
- Sim, de fato, como sempre estiveram.
- O que você quer dizer com isto?
Alguém tocou no meu braço por trás, Você está bem? era uma voz de mulher me chamando.
- Hein, como? Perguntei como se acordasse de um sono profundo.
- Eu vi quando você caiu da bicicleta. Olha o tamanho do buraco que te desequilibrou – disse a senhora com estrema bondade.
Olhei para o lado do anjo. Ele já não estava mais lá. Levantei, agradeci a mulher que me ajudou. Ela me olhava penalizada e com um meio sorriso de extrema bondade. Eu estou bem, garanti. Sai olhando para o céu. Não é possível que não exista mais esperança...

*Foto: Maria Helena Ribeiro

Um comentário:

  1. Belíssimo texto! Me lembrou muito o "Assim falou Zaratustra", de Nietzsche.

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