terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Bárbara


Papai não gostava de nos deixar ir às festas só as duas. Se mamãe não pudesse ir conosco, ele mesmo ia e, se nenhum dos dois pudesse, ficávamos todos em casa. Aconteceu de um dia a festa ser na casa de um vizinho e ele resolveu nos acompanhar. Fomos papai, Bárbara e eu. Nessa época, os bailes começavam cedo e tinha muita dança, mas nada de comida e a bebida era refresco. Nesse dia era assim também.
O local da festa não era muito distante e, logo que chegamos, papai foi ficar junto dos adultos para conversar e nós fomos para junto dos mais jovens. Eu tinha catorze anos e Bárbara era dois anos mais velha. Éramos as duas bonitas, eu menos, ela mais. Bárbara era dona de uma beleza antiga, de um tempo em que não se usava essa magreza que hoje é moda, mesmo assim, tenho certeza que não passaria despercebida em tempo algum.
Bárbara, mais saidinha, arrumava par bem mais rápido do que eu. Ela tinha namorado, mas não se importava muito com isso. O rapaz morava na roça e tinha combinado o namoro com papai, minha irmã ainda não se sentia comprometida. Então, quando íamos nalgum lugar, ela sempre encompridava os olhos para os lados dos rapazes. Bonita como era, não demorava, algum moço correspondia e começava o namoro.
Era tão diferente de agora. A gente namorava com os olhos. Mas era um negócio assim cheio de respeito. As pessoas ficavam comprometidas desse jeito e os outros todos respeitavam. Eram sorrisos, cabeças baixas, piscadelas furtivas e quando se era mais ousado olhava-se aberta e longamente para o eleito ou eleita.
Bárbara era do tipo ousada. Ela retinha os olhos no rapaz mais bonito e sorria cheia de malícia. Quando o moço valia mesmo à pena, ela era a primeira a dar a piscadela. Nesse dia, em especial, estava lá um desses namorados que ela gostava de admirar. Esse ela tinha conhecido na praça. Um moço alto que tinha como apelido Zezé e era peão numa fazenda que ficava nos arredores da cidade.
Os dois estavam naquelas de olhares e sorrisos já há algumas semanas. Ele vinha a cavalo no final do dia e passava sempre em frente de casa para vê-la na janela. E os dois namoravam de longe. Papai nem desconfiava, mamãe também não.
Nessa festa, contudo, as relações entre os dois ficaram um pouco mais explícitas. Zezé veio chamar minha irmã para dançar e ela prontamente aceitou o pedido. Dançaram os dois a noite toda. Papai olhando e eu, apurada, tentava por panos quentes.
- Não, papai, nós não conhecemos esse moço, e o que é que tem? Eles só estão dançando. Todo mundo está.
Mas papai, desconfiava, e retrucava:
- Os outros moços e moças não ficam o tempo todo, assim, coladinhos.
Depois ele saia de perto. E eu corria para Bárbara:
- Mana, cuidado, papai está te olhando. Ela vai levar a gente embora daqui antes da festa acabar.
Eu era ainda muito ingênua e pensava que a pior coisa que podia nos acontecer, em caso de desobediência, era ir embora da festa sem ter me divertido o bastante. Para mim, se a festa era boa, a gente tinha de ficar até a última dança, até os pés estarem tão doloridos que mal daria para chegar em casa.
Ainda não tinha experiência nos relacionamentos amorosos e nem sabia onde eles podiam nos levar. Namoro de olhar me parecia bom o suficiente e os meninos serviam para brincar de passa-anel e dançar. Por isso, não entendia quando Bárbara, apaixonada, ficava horas na janela olhando comprido para estrada. Não sabia que aquele olhar para o rapaz no cavalo era o único momento no dia em que ela de fato vivia.
Não podia fazer idéia do que ia acontecer nessa festa. As comunicações entre os dois namorados eram muito maiores do que eu imaginava e numa certa hora desapareceram. Papai logo deu falta. Eu não, porque estava no meio de um iê iê iê com João do rio, meu mais antigo amigo.
Papai surgiu meio pálido de raiva ao nosso lado, me puxou pelo braço e perguntou:
- Onde está sua irmã?
Eu não sabia. Não tinha como saber. Bárbara desapareceu junto com Zezé naquela noite. E continuou desaparecida por mais de uma semana. Só no outro domingo, dia meio chuvoso e triste, que o João do rio apareceu em casa. Agitado, com os olhos no chão, me mandou chamar papai com uma voz de medrar qualquer um. Corri para dentro e papai me mandou ficar por lá. Tinham encontrado minha irmã. Ou o que restava dela.
João tinha saído para pescar. E foi lá na beira do poço que encontrou o corpo de Bárbara. Estava deformado, mas dava para reconhecê-la. Trouxeram-na para a cidade e o velório foi muito concorrido. Todo mundo queria ver o corpo e prestar condolências a papai e mamãe. Todos sentiam muito a morte da moça mais bonita da região.
Quanto a Zezé, esse, nunca mais deu notícias. Desapareceu como se fosse filho do demo. Por causa disso, a gente nunca soube da verdade do acontecido. Mas as pessoas contaram muitas histórias.
Umas diziam que ela tinha descoberto que Zezé era casado, por isso tinha se jogado no rio. Outros que fora ele o assassino, já que nunca mais se soube dele. Alguns tinham histórias mais românticas e falavam que o amor dos dois era como o de Romeu e Julieta e que eles tinham se matado juntos, mas que o corpo de rapaz havia sido levado pela correnteza do rio. Porém, o certo é que minha irmã esse dia esteve nos braços de seu amado. Dançou com ele a noite toda e sumiram-se ambos pelos matos no fundo do quintal.
Se me perguntam dela, digo que viveu pouco, mas morreu de amor, que a melhor causa mortis do mundo.

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