quarta-feira, 29 de abril de 2009

Anoitecer


“A água da piscina está morna”, pensou Amelie de Souza Souto, enquanto olhava o horizonte rubro e entrecortado de prédios. As primeiras estrelas apareciam atrás de si, mas o calor bárbaro que fizera ao longo do dia ainda não se dissipara. Por isso mesmo, estava ali sentada à borda da piscina esperando os últimos raios de sol despedirem-se em ondas ardentes de luz sangrenta.
- Você ouviu o que eu disse? Perguntou Oswaldo Souto exasperado.
Ela olhou para o marido como se só agora percebesse a sua presença. “Não, meu amor, eu não ouvi o que você dizia”, mas não era verdade. Sim, Amelie se lembrava agora, ele já estava aí há um bom tempo e tinha dito algo muito sério: “eu não te amo mais”. Não esperava ouvir isso (não tão cedo), por isso sua mente se desviara dele e de tudo que ele ainda queria lhe dizer. Lembrou-se do dia de seu casamento, de quando a porta da igreja se abriu, do olhar de admiração de todas as pessoas que ali se encontravam. Lembrou-se também de Oswaldo, lá no altar, contemplando-a como todos, mas sorrindo, como se aquele fosse o dia mais feliz de sua vida. E era o dia mais feliz do qual ambos conseguiam se lembrar.
- Como foi que isso aconteceu? – disse quase sem abrir a boca, a voz presa entre os dentes, sem conseguir olhar para o marido.
- O que? Perguntou Oswaldo, surpreso com a voz-vidro cortante da esposa.
- Como foi que você deixou de me amar? Não pode ter sido assim de repente, porque eu me lembro do olhar cheio de sol com o qual você envolvia, do tremor na sua voz quando me pedia para ficar com você o resto das nossas vidas. Tenho certeza que ali você me amava, e amou em muitos outros momentos. Não é de uma hora pra outra que um sentimento assim acaba.
- É, e não foi mesmo, você tem razão. Houve um tempo que te amar era tão natural quanto respirar. Um tempo em que não conseguia imaginar um futuro no qual você não estivesse presente... – ele suspirou e fez como ela: olhou para o horizonte, lá onde o sol fazia seus últimos esforços de colorir o pretume da noite que caía de uma altura impossível.
Amelie estremeceu um pouco. Sentiu a verdade daquelas palavras e sentiu ainda mais porque Oswaldo usava os verbos no passado. Doía saber que estava perdendo o homem que amava. Ela sabia que o marido dizia a mais pura verdade: ele estava indo embora e nada do que fizesse faria com que ficasse, tornasse a amá-la como antes. Mas precisava saber por quê:
- Então me diga: quando foi que seu amor por mim começou a se apagar? Pois o amor é uma chama frágil, eu sei, uma brisa, um descuido dos amantes, até mesmo uma palavra água e ela se esvai. Mas achava que vínhamos os dois alimentando essa chama com nosso carinho, com o nosso cuidado um com o outro. Pensava que a chama estava cada vez mais forte, apesar de todos os anos que se passaram.
Oswaldo se entristeceu com essas palavras. Olhou para Amelie que se encontrava de perfil para ele, sentada a borda da piscina azul. Ela era tão bonita ainda, principalmente assim: os cabelos soltos, de lado com o seu nariz perfeito se destacando na pouca luz que ainda existia. Apesar de não ser mais tão jovem como no dia em que se conheceram, ela nunca perdera a alegria e o entusiasmo da adolescência. Não queria, não devia magoar essa mulher, não só porque a amou um dia, mas também porque sabia que ela o amava como sempre tinha amado. Mas como fazer para impedir que ela se machucasse? Como explicar que um dia acordou e não se reconheceu mais? Como dizer que queria se livrar de todas as grades que o prendiam? Como explicar sua imensa vontade de voar?
- Não teve data certa. Aconteceu um dia: eu abri os olhos e percebi que não era mais o mesmo... Percebi que não queria mais as mesmas coisas que você queria. Descobri que estava sozinho com os meus desejos e com os meus sonhos. Descobri que ao seu lado eu me sentia mais solitário do que quando você não estava. – as palavras saíam mais duras do que pretendia – Eu preciso descobrir de novo quem sou longe de você, longe de tudo isso que é a nossa vida.
A noite estrelava o céu, as janelas dos prédios distantes se acendiam, pareciam pingentes de natal. A energia elétrica, no entanto, não era suficiente para iluminar a escuridão que se formara no rosto de Amelie, “Quanto egoísmo”.
- Você está apaixonado por outra pessoa? É isso? – a voz tremeu, na barreira que os dentes formavam. Não se arriscava a olhar para Oswaldo, pois não queria que ele visse a dor em seus olhos.
- Não, não amesquinhe tudo. É mais do que uma simples traição. E é pior também – sincero, como não podia ser.
- Eu não entendo. Para mim continua tudo igual. No dia em que nos vimos pela primeira vez eu já sabia que iríamos nos casar. Eu tinha certeza de que estava escrito que era pra você ser meu...
- E eu fui seu, fui seu por todos esses anos em que vivemos juntos. Nós fomos carne da mesma carne por muito tempo. Mas eu mudei, você mudou. É chegada a hora de cada um encontrar seu próprio caminho. É chegada a hora de nós nos tornarmos indivíduos. Eu quero ser só eu de novo – ele já havia decidido e não havia como voltar atrás.
- Mas o que foi que eu fiz de errado? Gritou Amelie, ainda querendo lutar, mesmo sabendo que a guerra estava perdida.
Oswaldo levantou a cabeça e olhou para o céu escuro dessa noite feia que as luzes das cidades podem nos proporcionar. Não sabia o que dizer, mas precisava falar. Precisava desesperadamente dizer alguma coisa acalmasse Amelie. Precisava explicar o que se passara no dia em que viu a esposa caminhando, poucos passos adiante de si e teve vontade de fugir, de correr para o outro lado.
- Não é você a errada, sou eu – disse, por fim, mas sem conseguir se explicar de verdade.
Amelie olhou pela primeira vez para Oswaldo. Com ódio a princípio, depois teve pena. Ele parecia um menino perdido, precisando de colo e de um pouco de carinho. Acontece que ele não queria mais que o carinho viesse dela, queria percorrer outras veredas, encontrar outros amores. Cansara-se dessa vida que levavam. Era difícil aceitar isso, mas não era difícil de compreender. Na verdade, várias vezes ela se pegara imaginando uma história diferente para si. Chegara a imaginar um amante e, por muitos dias, o amante imaginário a perseguiu, idéia fixa martelando a sua cabeça, enfeitando os dias cinza. Mas havia sido um período passageiro, um sonho sem grandes conseqüências: só algumas noites febris. Com Oswaldo parece que o sonho não desaparecera e ele queria mesmo vivê-lo.
Oswaldo sustentou o olhar de Amelie por alguns instantes e soube que já podia ir. Conviveram os dois tantos anos que com um olhar se entendiam. Não sabia se algum dia conseguiria ter esse grau de intimidade com outra mulher. Talvez até nem devesse tentar. Amelie seria a única pelo resto de sua vida. Acreditava nisso. Mas não podia mais estar ao seu lado. Não tinha pra onde ir, mas também não queria ficar. Do lado dela não poderia mais sonhar. E era isso o que ele mais queria: sonhar, sonhar, sonhar... Ao lado dela a realidade, os deveres, as obrigações... tudo se avolumava. Pesado demais. Queria ser livre de novo e cometer desatinos. Sonhar até chegar ao êxtase do delírio. Sonhar e amar de novo. Um amor novo e leve como ar, como a luz.
Amelie saltou na piscina escura. Oswaldo olhou ainda para aquela linha no horizonte onde o sol havia desaparecido.

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