quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Mais uma boa experiência de leitura


Comprei A relíquia na rua de um ambulante que estava vendendo livros usados no chão. Encontrei entre tantas inúteis enciclopédias antigas e desatualizadas esse Eça de Queiroz e fiquei feliz em pagar por ele a bagatela de 2 reais. Claro que o vendedor não sabia que eu estava comprando ouro com dinheiro de comprar balinha. Mas tudo bem, nós dois ficamos felizes. Ele porque vendeu e eu porque comprei um bom livro quase de graça.
Conhecia A relíquia de nome por causa do Antonio Candido que sempre citou Eça como um de seus autores portugueses preferidos. Com esse respaldo altivo, levei o romance para casa e mal consegui esperar o momento feliz de abrir suas páginas e começar a leitura. E ele não me decepcionou. É um livro realmente incrível, escrito com toda a ironia possível e muito engraçado.
O protagonista se chama Teodorico Raposo. O moço português fica orfão muito criança ainda e é criado por uma tia muito rica e beata, a Titi. Todos procuram agradar Titi, por conta de sua riqueza e Teodorico não fica atrás. Passa o livro todo vivendo duas vidas: uma diante da tia, de muita devoção e sacrifícios em nome da fé, e outra longe dela, na qual recebe a alcunha de Raposão e é um devasso completamente entregue aos prazeres do mundo. Teodorico espera muito ansiosamente a morte da Titi, pois assim se livrará da vida de devoto e como herdeiro poderá gastar todo o dinheiro da velha nas suas aventuras de rapaz.
O que acontece é que Titi demora a morrer e estando doente resolve enviar o sobrinho Teodorico à terra santa para lhe trazer uma relíquia capaz de melhorar a saúde. O sobrinho vai, exultante diante da tia pela possibilidade de conhecer a terra onde Jesus nasceu, e muito infeliz longe dela já que sua verdadeira vontade era conhecer Paris, terra mais livre onde jovens como ele poderiam conhecer todo o tipo de prazeres e relaxações conhecidos.
A viagem como se pode imaginar é para Raposão uma oportunidade de desfrutar do dinheiro da tia, longe dela. Ele encontra lá os seus prazeres pelo caminho, especialmente com Mary, uma luveira muito bonita, e dela ganha uma camisola como lembrança, guardada com muito carinho e saudades das relaxações experimentadas ao lado dessa moça de braços gordinhos. Ao chegar em Jerusalém percorre-a ao lado de Topsius um companheiro de viagem muito estudado que aí está para estudar a história do rei Herodes. Estranhamente, um dia, ambos acordam nos tempos de Jesus e são testemunhas oculares da condenação e crucificação do rabi. Claro que descobrem os segredos que não estão no novo testamento sobre como o Messias era também devasso e se deitava com todas as mulheres das quais se agradava, e como a ressurreição na verdade era apenas uma tramóia, entre outras revelações bastante estranhas e engraçadas. Uma passagem do livro interessantemente "pós" moderna, já que se trata de uma paródia da história bíblica, contada com muito humor e crítica.
No final, já de volta a seu tempo e a seu Portugal, Teodorico comete um erro fatal para suas ambições de herdeiro. Entrega a Titi a relíquia errada, no lugar da falsa cruz de espinhos que trouxera da terra de Jesus, entrega a camisola de Mary, sua lembrança dos amores mundanos e dos momentos de pecado vividos durante a viagem. Titi fica furiosa e expulsa de casa o sobrinho. Este, deserdado, passa a viver uma vida bem distante da sonhada, mas agora livre da hipocrisia a que se via obrigado anteriormente.
O resumo acima obviamente não faz juz a narrativa de Eça. O autor tem um ritmo de escrita e uma fina ironia que o faz merecer o título de grande mestre da literatura portuguesa. E eu me diverti muito com esta leitura. A crítica à igreja católica e à fé falsa do povo não me passaram despercebidas, mas o que mais me divertiu foi o fato de o livro tratar de maneira tão "pós-modernista" o tema da paródia. É um livro do século XIX, realista, e ainda assim traz elementos muito atuais, e que são tratados como novidade nos dias de hoje. As novidades de hoje são muitas, mas nem sempre são mesmo novidades...

Nenhum comentário:

Postar um comentário