domingo, 31 de janeiro de 2010

Retrato de uma moça

tinha dias de eu ser assim 1,70 e quase 60 quilos. o cabelo desimporta saber se de origens afro, mas a pele clara e desbotada desimporta saber se de origem euro. e os óculos, não se pode esquecer deles, que são mais parte da cara que os olhos escondidos atrás deles. quase sempre desmaia, porque não sabe encarar bem as dores. quase sempre não chora na frente dos outros, não por vergonha, mas porque tem o coração duro. desinteressa saber se vive ou desvive uma vida de horas marcadas, o relógio de ponteiros indecentes que não permite um sonho mais longo ou um devanear durante períodos inteiros.

filha de uma mulher que chora muito e até hoje tem olhos úmidos mesmo sem motivos para lágrimas. essa mãe que desvive num ritmo acelerado e solta fogo pelas ventas. um dragão materno que protege e exige e mantém tudo no seu devido lugar. encastelados filhos que se veem por entre as grades da torre quase sempre contentes. onde estão as tranças de rapunzel? rapunzel joga as suas tranças para a bruxa, mas nunca sabe quem vai subir por elas de assalto. mas tem dias de eu não ter tranças e dias de ter chances de correr pelos campos longe do meu dragão querido.

irmã de dois irmãos gêmeos, rômulo e remo, mas nenhum deles pois fogo em casa. eles sempre juntos. dois, porém um, excluindo a terceira da trupe. tudo sempre dividido em dois, porém éramos três. talvez por isso tenha acostumado cedo a receber migalhas e não ser nunca lembrada. e assim crescendo entre dois ufanados astros da casa, esgueirando-se pelos cantos para não ser notada, um dia percebendo-se moça.

moça que continua intolerante à dor e à visão dos trópicos. para que toda essa luz? senhor, apaga o sol para que ninguém me veja. que ainda falta muito para o desejado descanso, quem sabe se uma vida inteira. um milhão de anos que poderiam ser evitados, uma navalha ou um voo cego, mas não, já faz tempo que não penso mais em navalhas e em voos cegos. não evitar esse desviver e aceitá-lo é que é díficil, mas resignação é boa palavra e tem se mostrado até companheira nos dias negros.

e há as esperanças. essas coisas que não fugiram das caixas e continuam guardadas. aguardando o dia feliz que compensa toda essa infelicidade e que talvez não venha nunca mais. esperança porém não é pra ser real, mas é pra ser só isso mesmo esperança. então quem é que sabe dessa desvida que a gente não leva só  é levada por ela. quem é que sabe? é deus que não está lá no alto mas em toda parte. deus tão sereno deus que nem se importa com as nossas misérias que são mesmo parte da vida e deus não fez a vida perfeita pros homens ou pras mulheres porque nem uns nem outras sabem nada de perfeição. ninguém é perfeito dizem, nem eu.

mas eu bem que queria perfeição, só que faz tempo que a minha noção de perfeição desentendeu-se comigo. daí deus, que me criou e confudiu-me, riu-se dessa sua criatura e desfez-se tudo o que eu despensava de mim e ainda acho, sem muita certeza, que a única coisa por enquanto é esse 1,70 e quase 60 quilos.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Citação ii

A ave aflita do meu beijo

"Quando a minha mão
contém a tua mão
quando os meus olhos contêm
os teus olhos
Quando a minha língua
desagua em tua boca
para levar para dentro de ti
o meu desejo
Eu sei como te amo
quando os teus lábios andam longe
e não te encontra
a ave aflita do meu beijo."

j. t. parreira

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Citação

"Os animais do mundo existem para os seus próprios propósitos. Não foram feitos para os seres humanos, do mesmo modo que os negros não foram feitos para os brancos, nem as mulheres para os homens." (Alice Walker)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Antônia

Antônia tinha pouco mais de treze anos. Estava sentada tranquila, olhando a água correr aos seus pés na beira do rio das almas. Tinha nadado até ficar cansada, os braços ardidos do esforço, o estômago roncando de fome, mas ainda faltava um pouco para a hora do almoço.

Naquela época, ninguém usava roupa de banho para entrar na água. Pelo menos não aqui nesse pedaço de fim de mundo, escondido numa curva. A gente estava andando na rua de repente sentia calor e entrava de roupa e tudo no rio.

Antônia tinha brincado com os outros meninos e meninas por ali. Tinha corrido, gritado, jogado bola, dependurado nas árvores, roubado goiaba nos quintais e se lançado na água do rio, junto com os outros.

O vestido de Antônia era claro, mas isso nunca tinha feito diferença até então. Os meninos se sentaram em volta dela e as meninas olhavam de longe. Eles e elas observavam Antônia e percebiam que ela já não era a mesma de sempre. As roupas grudadas no corpo revelavam formas rebentando na menina.

As meninas moviam-se aos pulos com risinhos de inveja. Os meninos, como que encantados, pareciam moscas em volta da fruta madura. Voejavam em torno de Antônia atraídos como ímãs capturados num campo magnético. Eles descobriam dentro de si um ardor estranho que ainda não tinha nome. Elas ardiam também, mas de um sentimento diferente.

Antônia via a água correr lambendo seus pés, pensava no estômago corroendo e no almoço cada vez mais próximo. Até que uma das meninas, no auge da malícia, gritou:  Antônia tá parecendo uma vaca de tão peituda!

Todas as crianças se alvoroçaram. Os meninos e as meninas gritaram em coro: Antônia peituda! A menina  olhou-se e viu-se como que pela primeira vez na vida. O vestido molhado revelava o corpo em broto de flor, desabrochando. Lágrimas quentes escorreram dos seus olhos.

De repente estava exposta na rua como uma qualquer. Correu para casa humilhada  pelo bando de meninos e meninas que riam dela. Jogou-se na cama em seu quarto e chorou até a vontade de chorar passar. Enfim, ainda em soluços, levantou-se. Diante do espelho,  admirou-se do que via, tirou o vestido molhado e, assim sem roupa, os olhos ainda ardendo do calor das lágrimas, sorriu. Encheu-se de uma felicidade desconhecida: era moça! Como não tinha percebido antes? Finalmente tinha crescido. Sim! Era moça!

Não importa o que os outros disseram e muito menos se importava de ser peituda. Olhava orgulhosa para os seios redondos no espelho, e resolvia: Já virei moça, não posso mais andar em folguedos de crianças.

 Antônia nunca mais brincou. Deu seus brinquedos e bonecas para as irmãs mais novas. Também não falou mais com seus antigos companheiros. Estes agora observavam a moça de longe. Os meninos de coração  nos olhos e nas pernas bonitas, nos seios volumosos, no leve balançar de quadris, em tudo que era Antônia, e eles demoraram tanto a reparar. E as meninas, muito despeitadas, deitaram a língua a falar mal dela.

Antônia passava calmamente pelas ruas. Agora estava do lado de lá da vida, tão perto e tão distante. Tão menina e tão adulta. Menina e moça no mesmo dia.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Jornal Antigo


Penso em ti, murmuro o teu nome e não sou eu: sou feliz.
Alberto Caeiro

Sentada à janela
O olhar perdido
Num jornal antigo
Os sonhos escorrem
Por dentro dela
As falácias de amor
Nascem e morrem
E ressuscitam
A noite adormece
Os homens ao longe
Sem saber do susto
Das constelações
Que são luz
E luzem dentro dela
E acendem manhãs
De plenitude
Pura
Que ecoam
Caminhos claros
E raros
O jardim floresce
Até que a dor
Palavra que a quer
Recomece

sábado, 23 de janeiro de 2010

Ela

Ela já não sorri como antes. Olha-se calmamente no espelho e do lado de lá outra estranha pessoa lhe devolve com insistência o mesmo olhar.
Ela já não sente suas extremidades como antes. Seu contorno exposto e alheio a si mesmo. Como se nunca tivesse sido e como se ressoasse de acordo com a música do campo em que se espraia.
Ela já não espera ser como antes. O nada supera a vontade de ser. O nada atrai como a lâmpada atrai a borboleta feia. O nada vazio da negação eterna de alguém que é sem ser.
Ela já não deseja como antes. O desejo escorreu como escorre o sumo da fruta recém mordida da boca que morde para ter prazer e causar dor.
Ela já não se esconde como antes. Mas não revela o que mais importa que é a imutável desvontade de metamorfosear-se em criatura nova e desprezível.
Ela já não ama como antes. Desde que o amor tornou-se tão solidamente palpável que pode enfim ser atirado como pedra na parede de casa.
Ela já não respira como antes.
Ela já não suspira como antes.
Ela já não vive como antes.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Sopro Sutil

Está dentro e fora
preenche o todo
Poderoso como o sol
que tudo purifica
Está no corpo e na alma
luz que não ofusca
Amor incondicional
maior que o universo
Está no ínfimo do átomo
e diz dentro do coração
"Despertem!"
Plenitude simples
paz absoluta

Sopro vital do mais sutil

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Lírios?

Gostaria de me explicar e não consigo. Mas para que essas perguntas? Quem sou? De onde venho? Para onde vou? Se muito melhor é não saber?

Ficar em silêncio presa na solidão de dentro de mim me deixa mais triste. Melhor seria mergulhar de vez no mundo em volta e descobrir tudo que desconheço. O que desconheço são lírios? Sei que não...

Qual o caminho seguir? Enfiar-me em mim? Sair-me de mim? O dentro ou fora? Qual a diferença? Há mesmo diferença?

Será que o resultado não é o mesmo? O dever ou o querer não são a mesma coisa? Nunca foram?

Tantos anos aprendendo a ser só e tudo isso ainda dói.

Como é inútil perscrutar o coração.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Do dia a dia

Gente morta
gente torta
pedaços de gente gemendo
gente gerando audiência
gente sofrida sofrendo
em frente a câmara,
por favor,
filma mais um pouco
aqueles que ali
se atracam
por um pouco
quase nada
de água
Gente de repente
vira bicho vira inimigo
vira a mão na cara do irmão
A repórter se empolga e chora
uma mão se agita no chão
que ela pisa e filma
É gente, gente,
gente viva
debaixo da demolição
Ajeita o cabelo
ajeita o sorriso
vai aparecer na televisão
Tem esperança
aqui onde falta tudo
e o mundo mudo

que, graças a Deus,
tem sempre uma tragédia
para fazer saber que seu dia
foi o melhor que podia
porque ninguém morreu
na sua família
e nem é sua a imagem do infeliz
que grita e se desespera
para o gozo de larga
e gorda platéia
de gente

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Penas e Pétalas II

Nas pétalas despetaladas
de uma flor abrigo
o passáro preferido
descansa as asas.
Ave incandescente
a buscar encanto
em canto quente
pousa suave entre
as pétalas suas.
Seu ninho
no meio do caminho.
No céu só a lua
é a testemunha
do doce fundir
de pétalas e penas.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Limite

o mundo bem que roda
a vida até que extrapola

linda é a marca da mão no chão
"este aqui" ela diz "é o limite"

então
não
insiste

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A arte da solidão*

Sozinho consigo mesmo
o poeta escreve
tenta arrancar
de estranhas entranhas
o motivo e a razão
de tamanha solidão

Sozinha comigo mesma
leio o poema do poeta
na tentativa de arrancar
de estranhas entranhas
o motivo e a razão
de tamanha solidão

(Copiei do Emil Staiger)

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Sobre a devoração de textos

"As palavras são muito bonitas também porque têm significados cicatrizados nelas", com essa frase de Ondjaki podemos chegar a diferentes conclusões. Numa delas, a que nos interessa mais, poderíamos dizer que os textos verbais (as palavras) são cheios de significados, porém não é qualquer significado, mas apenas aqueles que estão "cicatrizados" nelas.

Mas como descobrir esses significados? Para isso precisaríamos ler de fato, ou seja, ler compreendendo e fruindo. No caso de a leitura ser de uma obra de arte é ao extremo necessário ser um leitor. O que pode ser  entendido como a pessoa que é capaz de ler e ao mesmo tempo aprender, discordar e contemplar com toda sensibilidade estética que tem.

Um leitor destrói o texto que o escritor construiu. Quem lê de verdade não é apenas um ledor, é um devorador do texto que é digerido no cérebro. O leitor transforma o texto em partes menores para depois reconstrui-lo com sua própria visão.  O que o faz tão responsável pelo significado do texto quanto o autor.

A devoração de um texto descobre os significados cicatrizados nas palavras. O leitor não dá significados aleatórios aos textos que lê. Mas também não fica só na superfície do texto como faria um simples ledor. Devorar o texto não significa desrespeitar a intenção do autor. Também não quer dizer inventar novos significados que o texto não apresenta.

A devoração é a compreensão que se dá dentro do texto de suas multiplicidades semânticas. Todavia, ao devorá-lo, o leitor transforma o texto em parte de si mesmo e se alimenta dele. Isso acrescenta algo de valor ao texto, o valor de uma outra visão que é diferente da do autor.

O leitor não desrespeita o autor e o texto, mas acrescenta uma nova forma de ver o texto com a sua leitura/devoração. A leitura/devoração ultrapassa a contemplação e a compreensão apenas. Ela renova o texto tornando-o parte do mundo do leitor e, até mesmo, parte do próprio leitor que modificando o texto modifica a si mesmo.

A leitura/devoração é uma troca. É a mais profunda das relações entre os seres humanos: o diálogo amoroso ou a fusão amorosa de diferentes ideias. Ideias que não se repelem mas se transmutam dialeticamente em novidade. Novidade para o texto e para o leitor.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Dias felizes

Felicidade pode ser liberdade. Algumas vezes apenas. Nem sempre desejamos toda essa imensidão a nossa frente. São tantas as possibilidades de escolha. Qual é a alternativa certa?

Pergunta sem resposta. Não há alternativas corretas. Todas estão no mesmo patamar de valor. Se você entra por uma porta tem de segui-la até o fim. Se não der certo, se lá no fim não há luz, como acontece na maioria das vezes, há outras portas. Também no escuro. Não sabemos de nada. Por isso tudo é sempre assim tão escuro.

Mas acontece de amanhecer um dia luminoso. E você percebe quanta liberdade surgiu diante de si. Isso é felicidade? Outra pergunta sem resposta. Ter liberdade não implica saber o que é certo e errado. Na maior parte do tempo erramos. Dizem que errar é humano. Mentira. Errar é divino. Quase sempre os erros são tão bonitos quanto os acertos. Observe um bebezinho tentando falar. Todo mundo acha lindo os milhões de erros que ele comete antes de acertar.

Por muitos motivos depois de adultos ninguém mais diz que os nossos erros são bonitinhos e nem perdoam as nossas mancadas. Mas errar é divino. É lei da natureza. O universo é feito de erros e cada erro provoca um espetáculo que nos encanta. A própria vida é um erro.

Com isto queremos dizer que é fantástica a nossa liberdade, apesar dos erros ou mesmo por causa deles. Erro nas minhas escolhas, mas e daí? Todos erram. Temos liberdade para isso. Fazemos sempre o que devemos fazer. Ou seja, erramos.

Às vezes, muito tempo depois do erro que nos envergonhou, olhamos para ele com os olhos bondosos da experiência vivida, e percebemos que não era um erro. O erro deu tão certo que se provou matematicamente ser um acerto.

Liberdade. Somos livres nas nossas escolhas? Escravos delas? Tão difícil dizer qual é a verdade, simplesmente porque não há verdade. Errar e acertar parecem distantes. Só que parecer não é ser.

Felicidade. Ser feliz é fazer escolhas certas? Ou tentar por erros? Errar pela vida afora, até que o olhar da saudade se torne bondoso e a memória, tão criativa, nos diga que não erramos nada só vivemos.

Viver é errar pelo mundo. Dias felizes virão, nem que sejam retroativos, criação da nossa "boa" memória.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Por que?

Por que somos tão cruéis?
Por que passamos a vida no escuro?
Por que ninguém se importa?