Gullar diz que quando começa a escrever a página está em branco. Folhas brancas são mesmo excitantes e cheias de possibilidades. Mas a partir do momento em que se escolhe uma palavra as possibilidades diminuem. Está certo. Gullar sabe o que está dizendo. Se por acaso escolho falar sobre beijo. As multidões de possibilidades desaparecem. Não porque quando me lembro de beijo, só me lembro do seu beijo, mas porque quando os meus lábios tocam os seus todo o resto desaparece. E mesmo se eu digo chega ou pára, é porque a sensação é tão forte que poderia me desmanchar de repente e o medo de dissolver-me obriga-me a voltar a mim. Voltar a ser uma só pessoa, porque, com você, é como se eu perdesse-me de mim e virasse por um instante um confuso de nós. Quando eu não sou mais eu, por um nada de tempo, é como estar em casa. Os americanos têm essa frase/expressão que diz assim It feels like home, é assim mesmo que é o momento do perder-me num beijo. Esse desaparecer num mar de sensações que são leves e pesadas, doces e amargas, momentâneas e eternas.
E eu bem podia ser para você essa página em branco que o Gullar fala. Daí você bem que me poderia escrever em cima um livro. Como naquele filme lindo que nunca assistimos juntos em que a moça escreve na pele dos seus amantes nus, não sei se antes ou depois do amor. Certo, eu não sou assim uma página em branco, há em mim todas as coisas que sou ou penso que sou e que vivo alardeando em palavras. Mesmo aquela história de atirar o útero na parede, que é da boca para fora, e de não ser feminina o bastante, ou de ser mais macho que muito homem é feminismo de meia tigela que se derrete e desaparece só de ver seus olhos brilharem em cima dos meus. Eu viro mulherzinha, faço beicinho e sorrio para ver você sorrir e, se for preciso, tiro os óculos pesados e ponho lentes para combinar com os vestidos que nunca uso.
Mas se for para escrever em mim, sua pseudo página em branco, terá de escrever com os lábios porque nossa história merece o encontro de lábios com lábios. Pois a coisa mais linda do mundo é ver como seus lábios trabalham bem sobre a minha pele. E se for de seu agrado, porque, desde que me tornei mulherzinha, passei a gostar de fazer agrados, posso também fingir que você é minha folha em branco. Farei em você muitos versos e usarei muitos beijos para imprimir belos poemas na sua pele alva.
Seria bom essa troca de poemas porque, uma vez que eu não sou eu quando nós, você também não é você. Por um átimo de tempo podemos nos tornar duas páginas em branco e começar de novo. Ou não. Mil e uma possibilidades diante das páginas em branco. Se escolho outra palavra, talvez separação, a história termina de outro jeito. Ou não termina, pois não...
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